Inviolabilidade da intimidade

Uma reportagem transmitida pelo programa “Fantástico” da Rede Globo no início de fevereiro me motivou a escrever o artigo deste mês. Aparentemente uma matéria “fofa” com a chamada “Mulher se casa com doador de esperma que gerou sua filha 12 anos depois”. Num primeiro momento pensamos: “o amor, ah, o amor como é lindo!”. Mas na ótica do Direito e até da Biologia o fato é temeroso.

Desde que se tem notícia das doações de material genético ouvimos falar do sigilo e da garantia ao anonimato. A matéria, porém, põe em cheque esse direito, revelando um outro que está em crescente ascensão nos tribunais, que é o direito de toda pessoa conhecer sua origem genética.

A Constituição Federal diz em seu artigo 1º, inciso III que “temos como fundamento a dignidade da pessoa humana”. O artigo 5º, inciso X confirma ainda que “são invioláveis a intimidade, a vida privada…”. Além da nossa Constituição a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos também protege o doador em diversos artigos.

A reprodução assistida, quando existe a necessidade de doação de material genético (sêmen ou óvulos), pressupõe a utilização de material doado por um terceiro, que é o doador biológico, que jamais teve a intenção de formar aquela família ou mesmo de ter um filho com qualquer pessoa que utilize esse material. Está ali para contribuir com o projeto de uma pessoa ou de um casal (hétero ou homossexual) em realizar o sonho de ter um filho.

O anonimato sempre foi um instituto que protegeu o doador. Em alguns países, que não é o caso do Brasil, existe inclusive a possibilidade de venda desse material, caso dos Estados Unidos onde aconteceu o relatado na matéria que citei. O próprio personagem daquele caso, vendia seu sêmen durante a juventude como uma espécie de “segundo emprego”.

Se de um lado o doador tem o direito ao anonimato, por outro o ser humano que foi gerado com o material doado teria o direito a conhecer sua origem biológica e aí surge um grande conflito. Na reportagem tomamos conhecimento também de empresas que fazem um teste genético, onde se manda uma amostra de saliva pelos correios e algumas semanas depois recebe-se um relatório dizendo de onde seus antepassados vêm, porém no caso em tela, descobriu-se inclusive o nome do doador. O inverso também aconteceu, o doador procurou seus “filhos”, o que pode gerar sérios problemas familiares. Imagine uma família onde o filho resolve fazer um teste e descobre não ser filho de seu pai, ou mãe. Aquele casal que procurou ajuda para realizar um sonho verá o castelo desmoronar caso essas descobertas virem regra. Ou imagine um doador que contribuiu gratuitamente com a biologia e a genética ver-se cheios de “herdeiros”.

À luz do Direito precisamos pensar com a razão, a história “fofa” ou o “final feliz “ de uma linda história de amor que começou com a curiosidade de uma adolescente não podem se sobressair a direitos como o da preservação do anonimato, até porque se não tivermos essa garantia todas as pesquisas e todo processo biológico que levou aos resultados que temos hoje estará ameaçado. Também colocará em risco processos sucessórios, afinal imagine o número de herdeiros que podem aparecer no caso de um doador que venha a falecer e cujos “filhos” apareçam posteriormente cobrando direitos.

Num mundo em constante evolução precisamos preservar princípios básicos para que o Direito de todos seja respeitado, mas também temos que pensar no que pode ser destruído se algumas garantias não forem respeitadas. E a evolução da pesquisa, da biologia e da genética podem ser gravemente afetadas. A vida não é um conto de fadas, a vida real é muito mais complexa. A “fofura” de uma história de amor veiculada num programa de final de domingo pode se transformar numa grande dor de cabeça para os personagens envolvidos e até mesmo para a Justiça.

Enfim, Direitos sim, todos devemos ter e lutar por eles, mas sempre respeitando as garantias constitucionais e acima de tudo a intimidade dos outros.

José Antonio F. Antiório Filho é Advogado com MBA em Gestão Empresarial.

*Artigo publicado na Revista Vertical News

Edição nº 60 – 04/2019